terça-feira, 30 de março de 2010

Solaris

FICHA TÉCNICA
Realizador: Andrei Tarkovski
Elenco: Anatoli Solonitsyn, Tamara Ogorodnikova, Donatas Banionis, Natalya Bondarchuk, Nikolai Grinko.
Produção: Andrei Tarkovski
Argumento e Guião: Adaptação do romance Solaris de Stanislaw Lem por Andrei Tarkovski
Ano: 1972
Duração: 165 minutos
País: Rússia
Cor: Colorido / Preto e branco
Género: Drama / Ficção científica

SINOPSE
O filme começa com uma sequência de imagens do protagonista – o psicólogo Kris Kelvin (Donatas Banionis) – observando o movimento dos animais, o fluir da água de um riacho e a sua casa feita de madeira, onde estão reunidos os seus familiares. Numa das primeiras cenas, Kelvin queima antigos papéis, entre eles a foto da sua ex-mulher.
Kris recebe uma visita de Burton, um piloto aposentado, que apresenta a fita de seu depoimento a uma comissão científica a respeito das visões que teve ao sobrevoar o planeta Solaris. Kris fica um pouco céptico relativamente a estas “alucinações”.
Solaris é um planeta distante formado por um oceano imenso. O ramo científico que estuda, há várias décadas, o segredo deste oceano, a solarística, está a desvanecer-se por falta de interesse ou resultados.
A história do filme acompanha a jornada de Kris Kelvin, enviado para a estação que orbita à volta deste planeta para estudar, clarificar alguns acontecimentos e convencer os únicos três cientistas que lá permanecem de que é necessário destruir o planeta, irradiando-o.
Kelvin fica surpreendido ao descobrir que um dos tripulantes, o fisiologista Guibarian, se tinha suicidado e outros dois, o astrobiólogo Sartorius e o especialista em cibernética Snout, estavam à beira da loucura. De alguma forma, o misterioso oceano de Solaris parece ter a capacidade de influenciar a mente humana, fazendo com que os que entram em contacto com ele recebam ‘visitantes’ inesperados. Como os dois cientistas vêm a explicar a Kelvin, estas visitas constituem materializações de conceitos; o oceano sonda o cérebro, retira o conceito e torna-o real. E Kelvin não é excepção: depois da primeira noite na estação orbital, reencontra a sua esposa, Hari, falecida há dez anos.
Ao longo do filme, Kelvin estabelece laços cada vez mais fortes com a realidade do seu pensamento – Hari – quase como se quisesse reparar um passado perdido. Apesar de não ser biologicamente humana, pois é constituída por neutrinos, Hari vai-se comportando como tal: aprende, ama e suicida-se. Porém, é imortal.
Nas últimas cenas, Kelvin delira e Snout, a pedido de Hari, desmaterializa-a. As imagens transmitidas, que se pressupõem ser do sono de Kelvin, durante o encefalograma (exame que regista a actividade eléctrica do cérebro) revelam memórias confusas do psicólogo; o corpo de Hari é quase misturado com o corpo da mãe de Kris.
Quando acorda, sano, o astrobiólogo Snout informa-o de que o aquoso Solaris, de alguma forma, manifesta alterações, começaram a formar-se pequenas ilhas [quase como se tivesse comunicado com o subconsciente de Kelvin]. Snout aconselha, também, o regresso dos três tripulantes à Terra.
A cena final mostra Kelvin a ocupar uma das ilhas no Solaris, num ambiente bucólico semelhante ao inicial, onde dentro da casa de madeira se encontra o pai. Kelvin, num tom quase de alívio e nostalgia, chora e ajoelha-se à frente do pai.

CONCEITOS FILOSÓFICOS ABORDADOS

Por não saber bem por onde começar, admito, em primeiro lugar, que o estudo e a tentativa de entendimento deste filme se revelaram um pouco infrutíferos. Para conseguir fazer este tipo de trabalho é preciso bastante pesquisa e eu deparei-me com tantos temas abordados, tantas análises, tantas interpretações de tantos pormenores que concluí que era impossível compreender o filme do início ao fim. Já para não falar no debate, bastante produtivo, da aula e que levou a conclusão nenhuma. Conformada com esta pequena frustração, tentei estruturar uma análise. O que consegui foi o seguinte.

Como fizemos no debate, começo por enumerar alguns tópicos filosóficos que podem ser discutidos e, em parte, são abordados no filme. Podemos pegar nos limites e fundamentos do conhecimento (quando é que o conhecimento é válido?), na identidade do ser humano, na definição de inteligência e de dever, na psicologia, etc. etc.
Houve um aspecto que consegui retirar depois do visionamento e que eu considero relevante no que diz respeito à inovação de Tarkovski; ele utiliza alguns lugares comuns de ficção científica, como os fatos, as naves, a própria estação orbital para poder explorar (não esquecendo o romance de Stanislaw Lem) um espaço muito mais complexo, o espaço interior.
Mas vejamos vários aspectos pela ordem do filme. É no diálogo inicial, ainda em Terra, entre Kris e Burton que surge abordado o primeiro tema acima referido. Surgem concepções contrárias: Kris defende a imoralidade da ciência, se esta é incapaz de conhecer o oceano Solaris, o melhor é destrui-lo; Burton, porém, diz “Quer destruir o que ainda não somos capazes de compreender? Não sou adepto do conhecimento a qualquer custo. O conhecimento só é verdadeiro quando ético”. Para Burton, a validade do conhecimento processa-se através da ética, porque a actividade humana é intrínseca à posição moral e, por isso, a ciência, como acto voluntário, não pode ignorar este lado intimamente humano. Burton rejeita a ideia de destruição do planeta Solaris; esta destruição não traria aos homens descanso, pelo contrário. A eliminação do planeta proibiria para sempre o seu conhecimento; qualquer outro que adviesse desta destruição não seria conhecimento verdadeiro.
Esta problemática foi, também, debatida nas nossas aulas em relação ao filme Gattaca: conhecimento a qualquer custo? Podemos, pois, pensar que o diálogo de Burton é, talvez, um pouco contraditório. Se o conhecimento só é realmente verdadeiro quando respeita os parâmetros éticos, então a personagem não poderia aceitar desenvolvimentos da ciência moderna. Grande parte da genética, uma das maiores áreas da ciência moderna, teve início em actos extremamente violentos, que rasgam completamente os limites humanos. Será, então, todo o conhecimento de que dispomos hoje, um conhecimento falso? Todo o acto humano respeitará as bases éticas e morais? Esta temática pode ainda ser relacionada com a discussão do filme A Laranja mecânica. Alex violava exaustivamente os seus valores, adquiridos na sociedade, no seio familiar e das experiências pessoais. Os seus actos voluntários, que o (e que nos!) especificam como ser humano, quebravam os seus valores morais. Na altura postei no blog a minha opinião acerca destes casos excepcionais. Talvez algo de errado se passe a nível intelectual com os indivíduos que praticam actos sem respeitar os parâmetros éticos. No entanto, estes casos não invalidam, por vezes, que se obtenha conhecimento… Lembro-me de um caso famoso que o professor nos falou, Josef Mengele (conhecido por “Todesengel”, o “Anjo da Morte”) que fazia experiências escabrosas com pessoas (os prisioneiros de Auschwitz).
Não me quero alongar mais neste tema, porque o Solaris é um mundo infinito de inquietações filosóficas e algumas são bastante mais interessantes de discutir. Achei particularmente interessante a personagem Hari, a materialização do conceito de Kelvin. Trata-se, pois, de uma discussão entre o que é real e “virtual”.
Hari, na Terra, era a mulher de Kelvin que, depois de uma discussão e de perceber que Kelvin já não a amava, se suicidou. Nesta estação orbital, Hari é imortal. Representa a materialização do inconsciente de Kris, uma vez que resiste e se impõe. Apontando para a psicologia, julgo que a Hari assume a forma viva dos traumas do passado de Kelvin, é a projecção da sua (in)consciência dilacerada. Como referi na sinopse, na primeira parte, o protagonista queima alguns papéis antigos, entre eles uma foto de uma mulher, Hari. Contudo, dentro de si ainda não resolveu estas questões do passado, que só são materializadas no oceano Solaris, permitindo o confronto e resolução destas lacerações. A parte final pode ser interpretada como esta resolução do conflito interior, uma vez que Kelvin recupera a sanidade devido à comunicação com o oceano, à ajuda deste na acção do subconsciente de Kelvin. No diálogo na biblioteca da Estação Orbital, Hari diz: “Para vocês [os tripulantes da Estação orbital], as visitas são uma coisa estranha e irritante. Mas as visitas são vocês próprios, são a vossa consciência.”
Como não sou especialista em psicanálise nem psicologia, é-me difícil analisar o filme sob este ponto. A dimensão de Hari que se revelou mais curiosa para mim, e talvez para a turma, porque o debatemos durante uma hora e muitos minutos, foi a sua possível dimensão humana. No decorrer do filme, Hari apercebe-se da sua artificialidade e da sua humanidade incompleta; Sartorious acusa-a de não ser humana, ser apenas uma «simples réplica». Apesar de ter consciência de si, Hari responde: “Estou a tornar-me humana! Não sinto menos do que vocês. Já posso viver sem ele [Kris]. Estou a amar, sou humana”.
Põe-se, pois, em causa, a identidade de Hari como identidade humana. Sendo constituída por neutrinos, será que se pode considerar Hari humana? Poderemos considerar humanos aqueles que não possuem a componente biológica humana e que apenas satisfazem parte da componente psicológica? Poderemos considerar pessoas os organismo que não desfrutam de memória a longo prazo? Aqueles que apenas sentem são seres humanos? Não poderá Hari ser apenas a projecção do problema das personagens do filme (ou dos próprios humanos) que é o de se saber se, embora humanos, o seremos de facto? Ou do que nos distingue enquanto animais e o que nos distingue uns dos outros? Porventura o tal “Anjo da Morte” de Auschwitz será menos humano que muitos, pela falta de sensibilidade e humanidade? E por outro lado, será que ele via nas pessoas a que submetia as atrocidades humanos menos humanos que os homens arianos?
Tentámos responder a algumas destas questões no nosso debate, e que são abordadas no filme. O amor que Hari sente por Kris, o seu “criador inconsciente”, vai tornando-a, mais humanizada; também ela sente os conflitos intensos do amor humano. Apesar de a identidade humana, na minha opinião, só ser possível se obedecer a certos parâmetros, em Tarkovski surge uma definição bastante curiosa: o tempo constitui o ser humano, pois é com ele que se sedimenta os laços de amor. Concordo até certo ponto.
Através dos sentimentos, das reacções, das aprendizagens, das memórias, e, portanto, da componente biológica, podemos aferir se um determinado indivíduo pode ser considerado um ser humano. O encéfalo humano é constituído por um córtex cerebral mais evoluído do que todas as outras espécies. Como explicou António Damásio, o lobo pré-frontal é o local que desencadeia as reacções emotivas e que possibilita a elaboração e cumprimento de planos futuros. É, também no nosso cérebro que retemos dados, recordamos acções e revivemos memórias. Como tal, se Hari apresentava algumas destas capacidades, como sentir emoções (em especial, o amor) ou reviver memórias, sejam elas recentes (quando Sartorius lhe explica que é artificial e que a Hari “verdadeira” já morreu, a personagem consegue recordar-se) ou distantes (há um momento em que Hari se recorda de uma situação específica com a mãe de Kelvin), significa que dispunha de cérebro e estruturas biológicas que a permitissem tais processos. Tendo estas componentes que fazem do homem ser humano, Hari pode ser considerada ser humano.
Porém, esta história desenrola-se num local misterioso, desconhecido pela ciência e quase metafísico. Por isso, todas estas concepções mais literais que a biologia e toda a ciência moderna utilizam para definir ser humano podem não ser idealmente aplicadas neste outro mundo. Aliás, Snout, ao contrário de Sartorius, torna-se totalmente céptico sobre as possibilidades do conhecimento científico, devido à sua experiência na Estação orbital, uma vez que este conhecimento é incapaz de explicar estas visitas constituídas por neutrinos. Snout chega a dizer: “Ciência? Tolice! Na nossa situação, o génio e o medíocre, dois impotentes. Dizemos que pretendemos conquistar o Cosmos. Na realidade, só queremos aproximar a Terra das fronteiras dele. Não nos importam outros mundos. Queremos é um espelho. Procuramos muito um contacto, mas nunca o encontraremos. Estamos na situação idiota de quem aspira a um objectivo que teme e que não necessita. O homem precisa do homem”. Snout adjectiva o homem como um ser superficialmente egoísta e egocêntrico, que não gosta do incomum e que precisa de encontrar explicação para tudo, quando, na realidade, precisa, primeiramente, de conseguir olhar para o seu espaço interior, confrontá-lo, aceitá-lo e melhorá-lo. Voltando a citar Hari: “Para vocês [os tripulantes da Estação orbital], as visitas são uma coisa estranha e irritante. Mas as visitas são vocês próprios, são a vossa consciência.”
Pelo contrário, Sartorius incorpora a lógica do sistema social vigente, não se sentindo sensibilizado pelos mistérios. “O homem foi criado pela Natureza para a conhecer. O homem está cada vez mais perto da verdade. Condenado a conhecê-la. Todo o resto é extravagância.”
Se Hari não possuía, de facto, componente biológica poderia ser considerada humana? Na minha opinião, não. Apesar de assemelhar fisicamente a tal, de ser detentora de sentimentos e algumas (poucas) memórias, Hari não é humana. Não só por causa da falta de carácter biológico; quando esta personagem se tenta suicidar volta a ressuscitar. Portanto, ela não pertence a si própria; nem pertence a Kris. Embora tenha consciência de si, pertence ao relacionamento do oceano Solaris com o subconsciente de Kris.
É curioso como Tarkovski, em certa medida, descontextualiza contrapondo Hari com as restantes personagens. Embora pudéssemos dissertar sobre identidade humana a partir deste filme, como aliás, o fizemos, julgo que o objectivo de Tarkovski era também ironizar a situação. Porque, convenhamos, é um pouco irónico colocar uma personagem construída, supostamente não-humana, no meio de humanos alienados de si, por vezes insensíveis, que quase se tornam menos humanos ou sensíveis perto da “E.T”.


OPINIÃO PESSOALTal como me sucedeu com o filme Palombella Rossa, o não entendimento espontâneo do filme criou em mim uma curiosidade. A cena final é propositadamente confusa e talvez um pouco desconexa à primeira vista para formar esta sede de compreensão. Porém, ao contrário do filme de Nanni Moretti, não apreciei tanto este filme. Os 165 minutos, em especial na primeira parte, custaram um pouco a passar. Para se manter fiel ao livro, como o professor até fez notar, as imagens predominam sobre o movimento.
Gostaria de fazer referência a uma das cenas na biblioteca, onde Snout divaga sobre a imortalidade que, tal como a ideia de imperfeição, persegue sempre o Homem. É o facto de serem sempre imperfeitos e de viverem com a preocupação de um dia poderem morrer, que os faz ter pressa. “As visitas só chegam à noite. Mas precisamos dormir. Aqui está o problema – o homem perdeu o sono.” E pede para Kris Kelvin ler uma passagem do romance Dom Quixote: “Só sei uma coisa, senhor, quando estou dormindo, desconheço o medo, as esperanças, os trabalhos e a beatitude. Agradeço a quem inventou o sono, esta única balança que iguala um pastor a um rei; um imbecil a um sábio. Mas também tem o seu lado negativo, se parece muito com a morte.”
Alguns elementos cenográficos, como o Queirós referiu, são bastante peculiares. As cores do filme são por vezes substituídas pelas cores neutras, de forma aleatória (?). Também a presença de ícones de modernidade e do seu imaginário científico constitui um detalhe na cenografia de Solaris. É uma aglutinação de ícones passados e presentes que, ao mesmo tempo, dialogam com os futuros. As tais condenações (imperfeição e efemeridade da vida) não só une todos os Homens contemporâneos como os une intemporalmente e de resto o tempo e o espaço é algo que, por muito que o Homem tente controlar (no caso dos espaços, nomeá-los, tentar conhecê-los – tenta mesmo conhecer o espaço infinito do universo – no caso do tempo, dividi-o e organiza-o), são estes – tempo e espaço – que regem as leis humanas.


Júlia Reis

1 comentário:

  1. raios parta Júlia!
    foste logo por a única ficha que não posso ler! xD

    ResponderEliminar

Site Meter