sábado, 22 de maio de 2010

Tsai Ming-Liang

Nos anos 90, vi no cinema King, um filme que me deixou siderado. Tratava-se de o Rio de Tsai Ming Liang (não confundir com a obra prima homónima de Jean Renoir, um dos filmes mais duros que alguma vez presenciei. Duro, não porque tenha violência ou mortes, mas apenas porque ao longo de mais de duas horas somos confrontados com a dor física intensa por parte do protagonista. A dor torna-se tão lancinante que ninguém consegue sentir-se indiferente. Para o espectador é uma experiência absorvente e incómoda uma espécie de partilha forçada com a desdita do protagonista, algo que gera em quem vê, sentimentos profundamente contraditórios, entre a imperiosa necessidade continuar e a vontade de sair dali e encarar a vida de forma menos sombria e, sobretudo, menos dolorosa.

Numa destas noites, tive a oportunidade de ver outro filme dele: O Buraco. Parece-me ser o filme imediatamente a seguir a O Rio. Não me parece um filme tão bom, mas não deixa de ser uma outra experiência impressionante. No cinema de Lang tudo parece frágil à beira do abismo. Numa Taipé ligeiramente futurista (o filme passa-se em 1999 e foi rodado em 1997) há uma praga provocada por baratas ao mesmo tempo que chove incessantemente. Num daqueles prédios gigantescos com imensas casas pequenas rompe-se um cano de uma casa e um canalizador faz um buraco para a casa da vizinha do andar inferior a qual passa o tempo a apanhar água e a tentar salvar os seus haveres.

O filme mais uma vez parece colocar-nos à beira de um apocalipse frágil e pessoal. No Rio a dor física do protagonista conduz-nos à contaminação do estado de desolação: pela dor física no pescoço, somos estranhamente conduzidos à desagregação da sua família: à mãe que tem um amante que negoceia filmes pornográficos e ao pai que afinal andou a recalcar a sua homossexualidade. No Buraco, a desolação é total: chove permanentemente. A personagem feminina vive obcecada com a salvação das suas coisas e acumula rancor face ao seu desleixado vizinho do andar superior. Mas, quando acaba por soçobrar à avalanche da água é o buraco que lhe serve de perdição que a salva da solidão e a faz aceitar a mão amiga do seu malfeitor.

O que me fascina nestes dois filmes é que não se consegue encontrar um padrão de racionalidade clara no comportamento das personagens. Um dos maiores escritores do século XX, J.G. Ballard, era um mestre nesta forma de trabalhar. Criou cenários de desolação (um mundo cristalizado, um outro em que águas subiram tanto que apenas restam algumas ilhas,uma América dividida entre o deserto e a floresta virgem, ou ainda um mundo em que os automóveis «tomaram conta de tudo - o célebre Crash passado a cinema por David Cronemberg). Para Ballard a ideia central era a de transformar a desolação exterior em desolação interior.Num mundo radicalmente diferente, não se pode esperar que as pessoas mantenham os padrões de racionalidade semelhantes aos que estamos habituados. Assiste-se a uma dissolução psicológica e axiológica, uma transmutação de valores, embora num sentido muito distinto daquele que Nietzsche anunciava. Passa-se o mesmo nos dois filmes de Tsai Ming-Liang que vi. A degradação, a decadência não é apenas ambiental ou física, mas há um efeito de contaminação tornando-se psicológica e, sobretudo, moral. Cada personagem agirá de acordo com padrões aparentemente desconexos e destituídos de sentido. No entanto, é apenas a realidade que eles vivem que já não faz sentido para nós. Nalguns filmes de Tarkovsky (Solaris, Stalker e Sacrifício) há um processo semelhante.

Os filmes de Tsai Ming-Liang, estão disponíveis no blog sétimo projetor. Podem aproveitar o período de férias que se aproxima para os verem. Para o Rodrigo, em particular, que tem um grande fascínio pela cultura asiática, não devem ser perdidos de forma alguma. E para os outros também não.

Jorge

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