terça-feira, 25 de maio de 2010

Persona (1966)


FICHA TÉCNICA
Título: Persona – A Máscara;
Realizador: Ingmar Bergman;
Actores: Bibi Anderson (Alma, A Enfermeira); Liv Ullmann (Elisabeth Vogler, A Actriz); Margaretha Krook (A Médica); Gunnar Björnstrand (Sr. Vogler); Jörgen Lindström (O Rapaz, cena inicial);
Argumento e Diálogos: Ingmar Bergman;
Fotografia: Sven Nykvist;
Música: Lars Johan Werle;
Ano: 1966 (estreado a 18 de Outubro, na Suécia);
País de Origem: Suécia;
Linguagem: sueco;
Características Específicas: Drama; Preto e Branco; 79 mins.

SINOPSE/ OPINIÃO CRÍTICA
A história dentro deste filme é a de uma actriz – Elisabeth Vogler – que, durante a encenação de “Electra” deixa de falar de um momento para o outro. É enviada para um hospital onde é tratada pela enfermeira Alma. Apesar das tentativas feitas por Alma para que Vogler fale, nada parece resultar. Entretanto, a Médica (entidade superior a Alma) oferece a sua casa de Verão como estada para ambas as mulheres. Aceitam e é nessa mesma casa que se vai passar a maior parte da acção do filme.
No início destas “férias” Alma considera-se sempre muito feliz pela situação em que se encontra com Vogler. Alma conta à actriz que em toda a sua vida apenas a tinham considerado como uma “ouvinte”. Faltava-lhe sempre, portanto, a oportunidade de falar. É assim, com esta nova situação que Alma se começa a abrir para Vogler. Conta-lhe a sua forma de ver o mundo e as suas opiniões sobre os assuntos mais banais e histórias sobre o seu marido. No entanto, é na história de uma orgia na qual Alma participou e no aborto que se seguiu a esta, que se foca o epítome da primeira parte da relação das mulheres.
Tudo parecia estar a correr bastante bem entre as duas mulheres. Havia uma certa harmonia. No entanto, tal euritmia cessa quando Alma lê uma carta que Vogler envia à sua Médica dizendo que estudar a mente da enfermeira era uma tarefa muito agradável, chegando mesmo Vogler a ridicularizar o afecto que Alma havia criado por ela e as histórias que esta lhe havia contado.
Entretanto, já no último terço do filme, deparamo-nos com Alma a observar Vogler enquanto esta dorme. A enfermeira refere as cicatrizes da actriz e quão feia o sono a torna. É após esta cena que um homem no quintal, que afirma ser o marido de Vogler, começa a falar com Alma, como se esta fosse a sua mulher. Pouco tempo depois, Vogler esconde uma fotografia de um rapaz de pequeno. Quando Alma a vê, esta começa a falar explicar a Vogler a existência da fotografia assim como o que se passou durante parte da vida da actriz. Tudo isto se passa com a câmara focada em Vogler. A cena repete-se na íntegra, desta vez com a câmara focada em Alma. No fim deste segundo monólogo, Alma continua: “Não! Não sou como você. Não me sinto como se sente. Sou a Enfermeira Alma, só estou aqui para a ajudar. Não sou a Elisabet Vogler. Você é a Elisabet Vogler. Eu gostava de ter… Eu amo… Eu não tenho…”.
Ainda na mesma sala, Alma encontra-se com Vogler. Esta diz-lhe que o que se passou entre elas jamais voltará a acontecer. A enfermeira arranha-se até sangrar e, depois de Vogler começar a sugar-lhe o sangue do braço; Alma esbofeteia-a.
Já no hospital Alma consegue finalmente que Vogler fale. “Nada” é a palavra dita. A isto, a enfermeira responde “Está bom. É assim que deve ser”.
***
Parece que qualquer adjectivo que se empregue para rotular Persona é depreciativo. Encontro-me perante uma das (se não a) maiores obras de arte por mim já vistas. Tudo é imaculado e perfeito em Persona. Posso começar por referir a parte mais técnica do filme. Quanto à música, esta é maioritariamente surrealista, tal como o filme. Aparece nos momentos certos. O início do filme (sequência de que falarei mais adiante) encontra-se preenchido de tons arrítmicos, pontuais e certeiros. Não existe uma melodia, não existe uma forma. Existe o desarranjo; a falta de sentido aparente que se encontra também aparente no filme. As falas das personagens são, sonoramente, limpas. Ouve-se distintamente cada uma das sílabas pronunciadas, chegando ao limite de se ouvirem os estalidos que a língua produz ao produzir este ou aquele som.
Os jogos de luz claramente propositados conferem ao filme um ambiente que tem tanto de envolvente como de antagónico. Há uma luminosidade forte e bem caracterizada ao longo de todo o filme, que contrabalança com o vestuário sempre muito escuro tanto da enfermeira como da paciente. Outros grandes momentos em que se joga com a luz são um, em que Vogler adormece e, gradualmente, perdemos vista dela, mantendo-se só o brilho dos seus olhos; dois, quando Vogler “visita” o quarto de Alma e a luz incandescente por cima dela fazem lembrar um espectro que realmente se percebe ser, já que a actriz não estava realmente no quarto de Alma. Os planos em que se focam as faces das personagens transmitem um certo sentimento claustrofóbico e “apertado”. O espectador sente-se limitado na sua visão de um panorama por inteiro.
O uso de planos simétricos, estáticos e sobrepostos consegue difundir uma imagem de fusão no distinto. Uma das cenas no final do filme permite constatar muito bem esta ideia da sobreposição. A cara das duas mulheres aparece, literalmente, sobreposta, como pode ser visto na imagem acima, sendo esta uma das cenas que permite discernir melhor sobre o significado do filme em si (a ideia da sobreposição, falada à frente).
As actuações de Ullmann e Andersson são puramente brilhantes. A primeira confere todo o dramatismo e sofrimento, que se torna necessário numa mulher na posição dela, recorrendo apenas a expressões faciais. Ao ter falado apenas em dois momentos [“Não. Pare!”; “Nada”] poderia faltar-lhe alguma presença e força. No entanto a sua actuação é facilmente igualada à de Andersson por uma linguagem corporal e facial marcante. O sofrimento, a alegria inocente, a curiosidade. Tudo é possível obter de Ullmann neste filme. Já Andersson ganha pelo quase oposto. A fala torna-se parte dela de maneira extraordinária. Torna-se parte dela no contar de histórias, no partilhar de pensamentos. É isto que Andersson (à semelhança do que acontece com Ullmann) consegue individualizar, separando muito bem um momento feliz de um momento mais escuro e negro. Se num momento Alma se revela como uma rapariga inocente a Vogler, noutros, em que a confiança entre as duas cresce, a enfermeira expõe-se, tornando-se ela própria numa personagem muito dicotómica. Outra análise interessante que se pode fazer acerca da personagem de Alma é a sua própria evolução ao longo do filme. Começa como sendo uma pessoa muito equilibrada, terminando numa semi-loucura devido a tudo o que passou com Vogler.
Em termos de realização…
O filme, surrealista por si só, começa com uma das cenas mais surrealistas por mim já vistas. Apresenta-se-nos uma sequência de excertos cinematográficos do mais aleatório possível. Primeiro, uma câmara de filmar com particular detalhe no rolo emitido por esta; desenhos animados virados de “pernas para o ar”; curtos segundos mostrando um pénis erecto; um par de mãos; um homem de pijama a fugir de uma caveira; uma aranha; a morte e evisceração de uma ovelha; uma mão a ser pregada; dois idosos e uma criança deitados numa sala branca e não decorada, tapados por um fino lençol branco; gotas como som; um telefone a tocar. Nisto a criança acorda, começa a ler, para depressa parar e colocar a mão sobre um vidro que apresenta a cara de uma mulher desfocada, transformando-se noutra, voltando à primeira, etc. É de notar que as duas mulheres são Ullmann e Andersson e que nesta sequência inicial, só este último trecho parece ter nexo com o resto do filme.
Já no filme “em si” e depois de o vermos podemos facilmente notar que há uma predominância imensa do monólogo. Isto seria de esperar do convívio de uma mulher com outra, que se recusa a falar. Mesmo assim é muito interessante e curioso notar que nos diálogos do filme só durante cerca de trinta segundos é que vemos, efectivamente, os dois intervenientes de um diálogo. Durante a grande maioria destes a câmara encontra-se focada numa só pessoa (não obrigatoriamente a que está a falar) sem que se veja a outra. Um individualismo é transmitido com isto e, como já referido, tais planos conferem uma sensação de aperto muito característica do filme.
Numa análise mais profunda ao filme podemos começar por tentar explicar mais coisas. A primeira que parece ser mais óbvia é o porquê do silêncio de Vogler. A resposta parece ser-nos dada em dois momentos do filme. O primeiro é quando a Médica se dirige a Vogler e diz perceber as suas razões. Refere que a considera corajosa por se calar, por não ter de mentir mais. Considera que a actriz, à semelhança do que acontece com muita gente, se refugia no que é aceite, esquecendo-se, por vezes, de quem realmente é. Refugiando-se no silêncio Vogler não precisa de mentir. Pode ser quem ela é verdadeiramente sem precisar de colocar uma máscara. [“O desejo de estar finalmente exposto. Ser visto por dentro, cortado e talvez até aniquilado. Cada tom de voz, uma mentira. Cada gesto, uma falsidade. Cada sorriso, uma tristeza. (…) Você colocou essa falta de vontade num sistema fantástica. Eu entendo-a e admiro-a”].

A interpretação que faço acerca do filme e da mensagem passada por este não é de tão difícil explicação como de, provavelmente, interiorização por um terceiro. O que se passa naquela casa, entre aquelas duas mulheres é uma fusão de mentes, que parece numa cena que ainda referirei, abranger também (pelo menos de modo metafórico) uma fusão física. Quando digo fusão quero explicitar que esta não é puramente recíproca. Aliás, na minha opinião, é apenas Alma que se “transforma” em Vogler. A ansiedade que a enfermeira sente pela traição de que pensa ter sido alvo; o restringimento de que sofre por estar sozinha tendo alguém com ela; a personagem que tem de criar nela própria para que se mantenha sã: todos estes factores fazem com que, com o passar do tempo, Alma se perca num ideal que cria de Vogler (“ideal” por nunca se saber se a actriz se apresenta efectivamente como Alma a imagina).
Um dos primeiros momentos que nos permite perceber isso é quando, depois de uma noite inteira de monólogo, Alma pensa ter ouvido Vogler a falar com ela. Depois de deitada nessa mesma noite, Alma acorda com Vogler no seu quarto. Numa das cenas mais belas do filme, Alma e Vogler colocam-se lado a lado e depois de Vogler pentear Alma, a enfermeira faz o mesmo à actriz. No outro dia Alma pergunta a Vogler se esta havia falado com ela na noite passada, e, se tinha estado no quarto dela. Vogler acena a cabeça negativamente. Foram pois estas “alucinações” de Alma que considero terem sido o derradeiro turning point
[1].
Esta transformação e as razões que levam a ela vão sendo desvendadas ao longo do filme. Alma queixa-se, num género de aparte para a câmara, da previsibilidade da sua vida; Alma refere a Vogler que ambas são muito parecidas [“Acho que me poderia transformar em si se me esforçasse a sério. Quer dizer, por dentro.”]; Alma pergunta a Vogler se esta acha que cada pessoa pode ser duas ao mesmo tempo.
O culminar da transformação dá-se quando o marido de Vogler visita ambas as mulheres e identifica Alma como sendo sua esposa. Alma diz-lhe que não lhe é semelhante coisa. No entanto, quando Vogler se aproxima de ambos (sem que Sr. Vogler reaja) e coloca a mão de Alma na cara do homem Alma dispara “Amo-te. Amo-te tanto quanto te amava antes!”. Aqui começava a aceitação de Vogler da transmutação. A enfermeira rende-se ao facto de se ter envolvido e transformado em Vogler. Mais tarde, já na cama com Sr. Vogler, vemos o voltar de Alma “a si” [“Anestesie-me! Deite-me fora! Deixe-me sozinha! Sou fria e podre e indecente (…) São tudo mentiras e imitações, tudo isto!”]. Somos impressionados com esta cena. Não estamos à espera: afinal de contas Alma rendera-se. No entanto há uma necessidade por parte desta de ser que ela realmente é; de não se esconder a si nem aos seus defeitos atrás da figura Vogler.
A cena referida ainda no resumo do filme sobre a repetição de um monólogo de Alma é uma das mais arrepiantes do filme. Depois de Alma ter visto a fotografia de uma criança na mão de Vogler esta conta a história de parte da vida de Vogler, à própria Vogler sem se saber se tal relato é real ou onde Alma pode obter tal informação. A repetição do monólogo juntamente com as últimas palavras de Alma dá um significado notável à transmutação. Mais uma vez, Alma havia sido sugada para dentro de Vogler; mais uma vez ela tenta sair. O primeiro monólogo parece ser como que a história de Vogler contada de Vogler a Alma; o segundo, a história de Vogler contada de Alma a Vogler.

O filme coloca-nos algumas questões de índole mais filosófica e menos analítica. Umas mais óbvias que outras, mas nenhuma evidente. Todo o fundamento de uma relação é questionado. Afinal de contas, Alma convive com uma mulher que não fala com ela. Poder-se-ia pensar que toda a linguagem corporal já aqui caracterizada teria um efeito semelhante, mas não acredito em tal neste caso. É aliás por essa razão, por essa falta de outra pessoa que Alma cria em si Vogler. Podemos imaginar tudo isto como se Alma tivesse criado um amigo imaginário. Convive com ele, fala com ele, podendo ouvi-lo. Interagem. Não há a inércia pela qual se caracteriza o início da relação entre as duas mulheres.
Outra das questões que se coloca é o da actuação de Vogler. Será o seu silêncio legítimo? Seríamos sempre levados por teses deontológicas a imaginá-lo como sendo. Este silêncio tem como princípio o parar de uma farsa, o cessar de uma mentira. (Ainda não referido é o facto de Vogler ter engravidado porque as pessoas não a consideravam uma pessoa maternal. O “aceite” seria a falta de defeitos e Vogler “cria” em si esse desejo maternal, engravidando, fugindo à crítica do terceiro. Eventualmente tenta abortar, não resistindo à manutenção dessa farsa). No entanto as consequências que esta tendência que Vogler começa a apresentar para o “verdadeiro” são desastrosas. A sinceridade de Vogler expressa, por exemplo, na carta enviada pela actriz até à Médica leva à mudança de atitude de Alma em relação à sua companhia. A verdadeira Vogler é mesquinha, má, queixosa. Goza com a inocência demonstrada por Alma em actos de afecto. Aproveita-se da ingenuidade de uma mulher como puro entretenimento.
Ainda sobre a necessidade que uma pessoa tem em se expor como quem verdadeiramente é, devido ao estrangulamento que por vezes sente, temos outros momentos significativos no filme. Na carta de Vogler à Médica, a actriz revela que segundo Alma as suas próprias noções de vida não estão de acordo com as suas acções. Parece haver portanto uma necessidade, também da parte de Alma a “sair” e a expor-se da concha que tem dentro de si, ainda antes da transmutação. Pergunto-me: ansiamos todos pelo mesmo?
A própria identidade pessoal é questionada. Quem somos? Até que ponto nos podemos manter fiéis ao “nosso” como ser individual? Seremos, mentalmente, uma fusão das várias pessoas que passam pela nossa vida?
Persona torna-se um filme sobre o outro e sobre o pessoal. A natureza humana é explorada num filme que sobe numa gradação de clímaxes. Uma história curta e aparentemente simples é transformada num complexo estudo psicológico. Um estudo sobre a solidão a que o ser humano poderá estar sujeito. E, se sujeito como reage? Através do refúgio no que não é solitário: a mente própria ou do outro. A criação de sujeitos interiores a nós, no exterior. O ser social explorado através de duas mulheres e de uma terceira, criada. A luta entre uma busca do ideal – o outro, na medida de convívio – e o genuíno – o nosso, na medida de sinceridade.


“Dizem que você é mentalmente saudável mas a sua loucura é o pior. Você mostra-se saudável. Você mostra-se tão bem que toda a gente acredita em si. Toda a gente excepto eu porque sei o quão podre você realmente é.”

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