quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Algumas pistas de reflexão sobre o filme A Comédia de deus

Alguns de vocês acharam estranho, não só o filme de João César Monteiro, mas também, os motivos que me levaram a incluí-lo neste ciclo.

Como sabem, vamos dedicar este ciclo aos valores e achei por bem começar por um filme que representa uma absoluta transgressão dos valores tradicionais. O filme é marcado pelos contrastes claros que perpassam toda a obra cineasta: a música erudita e a música pimba;as citações literárias de Camões e a linguagem vulgar; a obscenidade e o recorte literário; as muitas palavras e o silêncio; a opulência e a degradação.

Mas, o filme é sobretudo marcado pelas contradições de João de Deus: homem pacato e zeloso, alquimista genial e respeitador dos valores familiares («não te esqueças que um dia serás mãe»), fundamentalista da higiene pública da privacidade da imagem e da reputação, pretenso altruísta que aparentemente se solidariza com os problemas da fome no mundo («temos que ser uns para os outros»). Mas é também a personagem da extrema perversidade: coleccionador dedicado de pelos púbicos, violador de empregadas de geladaria, falso beato e perverso no limite, João de Deus representa de uma forma cabal as contradições de uma moral dominante excessivamente repressiva que gera em todos nós uma duplicidade comportamental em que a parte obscura se remete para o domínio privado e nunca assumido perante os outros.

A hipérbole de João de Deus (personagem entendida como alter ego do cineasta) o seu sentido de transgressão e de excesso, nunca é gratuita. Ela remete-nos sempre para uma crítica feroz de todos os poderes colectivos constituídos sejam eles políticos, religiosos, empresariais e culturais (reparem no discurso de apresentação do novo gelado e dos convidados que o acompanhavam - uma prostituta reformada, um padre, um político e um empresário)e pela afirmação de uma feroz individualidade(JCM nunca se identificou com qualquer grupo ou lobby mesmo dentro do cinema)que mais do que uma redenção, deve ser entendida como um percurso de vida.

O filme remete-nos de forma elíptica para um vasto conjunto de questões de natureza filosófica, sobretudo de natureza moral: o que é o Bem e o que é o Mal? (Nietzsche defendia que estes conceitos não passam de palavras vazias). Quais os limites das convenções morais? Quais as relações entre a moral dominante e a felicidade individual? Qual o sentido de representação (no sentido teatral do termo) necessário a cada um de nós para se afirmar de forma socialmente aceitável, reprimindo a vontade e o prazer individuais? O que é que é socialmente aceitável relativamente aos comportamentos sexuais? Até onde poderemos transgredir?

Infelizmente, a sua extensa duração impediu-nos de debater o filme. Por mim, estou disponível para nos juntarmos para conversarmos sobre ele numa 5ª feira (nesta ou noutra); para já, deixo-vos aqui este desafio, para através do nosso blog irem expressando as vossas opiniões.

Jorge

PS: Com tudo isto não vos falei da qualidade do filme. Acho-o simplesmente assombroso!

6 comentários:

  1. Gostei muito do filme também.
    O post está fantástico.
    Eu estou disposto a que debatamos amanhã Às 11h30 também e sugiro que o façamos na sala da AE que assim eu vou adiantando trabalho xD

    fjo

    ResponderEliminar
  2. De facto, o post está fantástico. E tenho de reflectir mais sobre as questões de valores...

    No entanto, já digeri o filme e não concordo quando o professor diz que é assombroso. É um filme muito bom, mas faltam-lhe alguns ingredientes para alcançar outro estatuto: embora tenha sido perfeito nos papéis de realizador e argumentista, João César Monteiro, como actor, é apenas mediano. E se fosse só ele... mas não. Há vários actores algo deslocados - a senhora que faz de prostituta reformada é demasiado teatral, algumas das raparigas novas não sabem encontrar um meio termo entre a teatralidade excessiva e a falta de emoção... enfim, continuo a achar que um dos maiores problemas do Cinema português é a falta de actores multi-facetados - um papel num filme não pode ser encarado e interpretado da mesma forma que um papel num programa televisivo ou numa peça de teatro. São meios completamente diferentes. Mas há muitos, muitos actores portugueses que o fazem - participam numa novela, pensam que um filme é a mesma coisa, só que num ecrã grande. Os que não o fazem geralmente chamam-se Joaquim de Almeida, Maria de Medeiros, agora parece que também podem chamar-se Daniela Ruah... =P

    Para além daqueles problemas a nível de elenco, há cenas que se arrastam demasiado - por exemplo, praticamente todos aqueles momentos de transição (cena dos berlindes, cena da piscina/mesa). Não é que esse tipo de cenas não seja bonito, mas tudo o que é de mais acaba por enjoar.

    De qualquer das formas, o filme é muito bom. Fiquei com vontade de ver mais filmes do João César Monteiro.

    ResponderEliminar
  3. Rodrigo

    Eu respeito a tua opinião, mas penso que os padrões quer de desempenho dos actores, quer do próprio desenrolar das cenas dos filmes de JCM, assim como de muitos outros autores do cinema europeu, são significativamente diferentes dos do cinema americano. Estamos demasiado habituados a uma única forma de desempenho dos actores e do desenvolvimento do próprio filme e estranhamos quando os mesmos decorrem de forma diferente.

    Eu percebo pouco sobre a arte de representação, nas suas diversas vertentes (cinema, teatro, televisão). Mas lembro-me de que aquele que para muitos é considerado como o melhor actor português - Luís Miguel Cintra (teatro da cornucópia, filmes de César Monteiro e de JCM), considera que a chamada «representação natural» é uma fraude. Segundo ele, representar de forma alguma significa imitar a vida.

    Jorge

    ResponderEliminar
  4. Já vi algum cinema europeu, algum cinema asiático, algum cinema americano e o problema não está, na minha opinião, no que se faz além-fronteiras; não tem a ver com questões de formato, elenco ou qualquer espécie de habituação, mas definitivamente no que (não) se faz em terras portuguesas.

    O objectivo de qualquer interpretação, a meu ver, é transmitir um determinado sentimento contido num argumento. Ao ver filmes como o de ontem, sinto frequentemente não aquilo que o actor quer passar, mas a tentativa frustrada de o fazer. Quando a prostituta reformada está supostamente encolerizada, eu não sinto "ela está colérica", mas antes "ela está a tentar parecer colérica". A postura dela, a colocação da voz, o andar para um lado e para o outro... é excessivo, é desnecessário, é aquilo a que os ingleses chamam de "overacting" (perfeitamente aceitável em teatro, maçador em cinema). Já o João César Monteiro peca pelo oposto - ele muitas vezes parece estar a fazer um frete, profere quase todas as frases com uma secura que não condiz com grande parte do que ele escreve. É tudo uma questão de passar os sentimentos errados, ou de nem sequer passar algo cá para fora.

    Concordo plenamente com essa consideração de Luís Miguel Cintra. Representar não é imitar a vida, embora esta seja necessária na construção das personagens. E nós vemos isso um pouco por toda a Europa, Ásia e América. Mas em Portugal... não. Acho que precisamos de formar melhor os artistas de cinema, a maioria peca pelas interpretações extremadas ("overacting" ou "underacting", ou 8 ou 80). Porque actores de teatro temos muitos e muito bons, e começamos a ter alguns actores bons em televisão. Mas de cinema? Conto-os quase pelos dedos das mãos.

    ResponderEliminar
  5. Vejo que se começa a acender um debate sobre a prestação dos actores no filme e em Portugal em geral. Quanto ao filme, apesar de não achar que os actores pequem tanto como o Rodrigo diz, acho o apreço do professor excessivo. Não ao filme, que considero mesmo muito bom, mas às prestações. Acho que a actriz que fazia de prostituta "reformada" safava-se bastante bem mas concordo com o Rodrigo no que concerne a monotonia expressiva do César Monteiro. Felizmente, não acho que neste tipo de filmes a representação seja o parâmetro mais importante, o que deixa a minha opinião quase inalterada. Quanto à qualidade dos actores portugueses em geral acho que o Rodrigo é excessivo na crítica. Tanto no teatro como na televisão ou cinema, actores como Nicolau Breyner, Miguel Guilherme, Joaquim de Almeida representam uma faceta positiva da representação em Portugal, e considero quase criminoso esquecer o grande Vasco Santana. Rita Blanco e Beatriz Batarda são outros grandes nomes que não devem passar despercebidos, para além duma panóplia de que não me consigo lembrar

    ResponderEliminar
  6. Concordo com o Queirós no que toca à prestação da meretriz.
    Quanto a "cenas que se arrastam demasiado " e "a monotonia expressiva do César Monteiro" estou completamente em desacordo com o Mr.Q e o Rodrigo. Interpretei-os como uma óptima forma de fazer um contraste entre uma rotina quase arrastada e actos profundamentes imorais.
    Porque no final o melhor do filme é isso: o contraste da personagem de que o professor já falou. É um homem que põe 20 cigarros na boca em risco de ser esfaqueado.
    Por outro lado acho que estes recursos aliados com aos espectos físicos das personagens que aparecem, com os cenários lisboetas e com a dicotomia da linguagem usada transmitem muito bem a essência de Lisboa.
    Estou-me a lembrar agora da peixeira e do talhante gordos, das ruas de venda da alfâma e da janela com vista para o Tejo, e do lirismo de Camões lado a lado com uma parafernália (à tua, Rodrigo! xD) de expressões populares - algumas das quais nem conhecia.

    Quanto mais penso no filme mais gosto dele.

    ResponderEliminar

Site Meter